o capoeirão da fantasia de mário de andrade

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O Turista Aprendiz e Macunaíma: o capoeirão da fantasia de Mário de Andrade

Mário de Andrade, em seus relatos de viagem reunidos em O Turista Aprendiz, nos deixou chaves de leitura para Macunaíma, e talvez para toda sua produção, teórica e poética. São relatos a serem desvendados, e somos fascinados e atraídos para seus mistérios tal qual o turista-escritor foi pela Amazônia. Elementos mistos permeiam o livro, resultado das anotações diárias nas viagens que realizou pra o Norte e Nordeste do Brasil – algumas páginas e anotações avulsas foram perdidas, como era comum com os rascunhos e primeiras versões de Mário. Pode-se dizer que vários diários existem dentro de um, com estruturas, estilos e objetivos diferentes – ou, antes, várias viagens dentro de uma. Suas anotações, muitas vezes íntimas e reflexivas, são uma porta de entrada para a compreensão de seu pensamento e de seu caminho, estético, ideológico, pessoal. Este trabalho se concentrará em identificar algumas dessas chaves de leitura, e ao mesmo tempo traçar um roteiro de interpretação sobre algumas das viagens contidas no Turista Aprendiz.

Formação

A viagem que as anotações acompanham é uma viagem de formação para o autor. Esse abraçar da errância, do estrangeiro, causou claramente grandes efeitos em sua vida e em sua escrita. Uma das muitas contradições do modernismo reside no fato de que seus escritores, de origem culta, se abastecem e buscam sua própria identidade nas tradições populares; essa contradição se manifesta na figura de Mário, em sua vida, em sua obra, e muito nessa viagem. Pelos inúmeros desconfortos da viagem, pelas descobertas e vivências, o deslocamento geográfico afetou/rompeu a noção de Mário de sua própria identidade e nação:

“Não sei, quero resumir minhas impressões desta viagem litorânea por nordeste e norte do Brasil, não consigo bem, estou um bocado aturdido, maravilhado, mas não sei… Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem-arranjadinho que ainda tenho dentro de mim.” (ANDRADE, p.60).

O Mário europeu cinzento vai se diluindo lentamente nas águas fluviais da jornada, enquanto o problema da nacionalidade toma forma cada vez mais nítida. Sua busca por uma identidade e nacionalidade brasileira, que passa por seu trabalho com a língua, é também busca de uma identidade própria – o problema moderno da identidade do indivíduo toma formas mais complexas em países colonizados, que passam pelo processo de importação de moldes de um modelo de civilização alheio. Mas por não termos parâmetros próprios, estritamente nacionais, a busca de uma identidade é ao mesmo tempo criação da mesma. Em Macunaíma, Mário desdobra essa questão: não será justamente nossa falta de uma identidade, de um caráter – “o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional” (ANDRADE, 1928, prefácio de Macunaíma) – elemento de nossa autenticidade própria, nacional?

Pesquisa

A viagem foi, talvez antes de tudo, pesquisa etnográfica e cultural. Se o projeto de nacionalidade de Mário de Andrade fica claro em Macunaíma, em O Turista Aprendiz nos deparamos com sua aplicação prática: o trabalho que Mário realizava, de coleta do folclore brasileiro, mitos, lendas, música, cantigas, seguindo sempre seu procedimento de tudo absorver, desrespeitando fronteiras geográficas, desregionalizando, de fato, transformando a cultura em um caldeirão homogêneo, unificado, finalmente nacional. O desrespeito das fronteiras é um dos traços marcantes na construção de Macunaíma – as lendas, flora, fauna, personagens, acontecimentos, nunca se dão nos locais esperados; toda a ação ocorre em um novo território, o Brasil que é “capoeirão da fantasia”, sem proibições, temores e sustos da ciência ou da realidade (ANDRADE, 1926, prefácio de Macunaíma). Esse novo território tudo abarca, tudo contém, a tudo chega, sem fronteiras. Em carta à Câmara Cascudo, datada de 1927, Mário revela suas preocupações nesse sentido: “Tenho muito medo de ficar regionalista e me exotizar pro resto do Brasil. Assim lendas do norte botei no sul, misturo palavras gaúchas com modismos nordestinos, ponho plantas do sul no norte e animais do norte no sul etc. Enfim é um livro bem tendenciosamente brasileiro.”

É necessário compreender o deslocamento e a desregionalização como fatores essenciais na criação de um pensamento de nacionalidade; não é a toa que Mário se desloca para o extremo do país, muito longe de qualquer roteiro cultural da época. A vida literária brasileira existia em um ciclo fechado de conivência e paternalismo entre os letrados, o público burguês e a crítica elitista – se deslocar era também procurar uma alternativa a esse ciclo, o ciclo da literatura que começa e acaba “no âmbito da vida oficial” (CACASO, 1997, p.157). Se deslocar era uma atitude modernista, no sentido de forçar uma abertura para fora do ciclo, desoficializar a literatura e seus meios. Mário foi atrás da cultura que permanecia fora do ciclo, um universo inteiro que não fazia parte da vida oficial. A viagem de Mário é um gesto de desoficialização, de estabelecimento de novos roteiros, de interesse em expansão do pensamento, ruptura de padrões, atualização/renovação da forma. Se deslocar era mover combate contra a paralisação.

Invenção

A viagem é também viagem de invenção. Nas histórias das tribos dos índios Pacaás Novos e Dó-Mi-Sol vemos o Mário inventor, em sua melhor forma. Mário escolhe a ficção para explorar o real, no que o real tem de mágico, de surpreendente. Com ironia, com humor, mas principalmente com imaginação, Mário contrapõe através de suas invenções, o universo mítico amazônico com a nossa caricatura de civilização e progresso urbano. Ou melhor, acaba por fundir os dois, sendo fiel ao seu procedimento de desregionalizar, abarcar o Brasil inteiro. No diário, Mário insere o mito no cotidiano da viagem, no dia-a-dia do viajante. O mito é parte integrante da realidade desse Brasil que Mário busca-enquanto-cria, da mesma forma que é em Macunaíma. Mário aproveita a viagem para fazer humor. Quando usa seu tom jocoso, de uma seriedade cômica, para descrever maravilhas surreais, brincando de registro, de viagem de descobrimento, sabemos que o Mário com intenções modernistas sempre afiadas está presente na viagem, parodiando e recriando a literatura de etnógrafos e viajantes sobre a cultura local. Em um trecho, destacado por Telê Ancona Lopez, Mário ultrapassa “o inusitado, para buscar o cômico, a hilaridade no disparate em voz de crônica antiga e séria (LOPEZ, 1996, p.95):

“Antes da chuva fez um calor tão fecundo que a gente, com uma dessas lentes–de-aumento comuns, podíamos observar uns nos outros o crescimento da barba. Creio que por causa do calor os índios dessa região são mui barbudos e trazem a barba a tiracolo, em tranças de desenhos complicadíssimos. E é costume os jacarés aparecerem sempre a primeiro de junho, nos igapós de beira-rio, para os turistas poderem contemplá-los com satisfação. Enxergamos muitos boiando.” (ANDRADE, p.76)

Os companheiros de viagem de Mário não escapam de seu humor afinado, se transformam em personagens, ganham apelidos, são integrantes da aventura; o que dá profundidade ao efeito de ficção do diário.

Além das correspondências estabelecidas até agora entre a viagem de Mário em O Turista Aprendiz e Macunaíma, Telê Ancona Lopez traça um pequeno roteiro de “repercussões explícitas”, como chama, entre as obras (LOPEZ, 1996, p. 99). Trago algumas: o artesão de objetos de cascos de tartaruga do Pará confecciona uma cigarreira em Macunaíma; a friagem dos Andes aparece no fio de aranha de Capei; a cerâmica de Belém está na casa do gigante. São correspondências que deixam claro que o Brasil que Mário descobre e recria nas suas viagens é o mesmo Brasil de Macunaíma, o capoeirão da fantasia.

Engajamento

O que importa, ao analisar as correspondências entre os trabalhos de Mário de Andrade, é entender que estamos diante de um projeto. Mário, enquanto modernista, intelectual e escritor, estava interessado em mover a arte, em engajar as formas. Mário encarava a produção artística como ação, vida, ato que contém em si capacidade de mover algo, modificar algo, causar efeito; ele é antes de tudo um combatente, um movedor; moveu a cultura popular, intercambiou com ela, apurou seus recursos. O modernismo de Mário surge como espécie de resposta, de afirmação da maioridade literária brasileira; e também um meio de afirmação de si próprio, de sua autonomia, de seu projeto. E o percurso de O Turista Aprendiz, reafirmado em Macunaíma, são talvez os frutos mais intrigantes desse projeto.

[Marina Sant’Ana]

 

 

 

Bibliografia

ANDRADE, Mário de, O turista aprendiz.

ANDRADE, Mário de, Macunaíma

CACASO, Não quero prosa. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997

LOPEZ, Telê Ancona, Mariodeandradiando. São Paulo: Editora Hucitec, 1996

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