haikai: poesia e experiência

Hai-kai é o nosso tempo, baby. Um tempo compacto, um tempo “clip”, um tempo “bip”, um tempo “chips”.

(LEMINSKI, 2001.p.101)

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Haikai não é apenas um falar sobre, mas sim, resultado de uma experiência. O poeta que escreve vive aquele instante e no posfácio da biografia do mestre do haikai- Matsuó Bashô- intitulada bashô-a lágrima do peixe, Leminski dá a ver a imagem dessa “arte zen” como algo que passa por nós e nos rouba a “alma”: “De repente, por dentro de um dia, passa um haikai, que acabou de roubar a alma de um instante, como se roubaria um beijo, se o tempo fosse uma mulher bonita”(LEMINSKI,2013,P.149).

É a sutileza e a complexidade envolvidas na composição do haikai- tradicionalmente escrito em linha vertical e composto por dezessete sílabas- que envolvem o poeta nesta arte oriental. Paulo Leminski escreveu a biografia de Matsuó Bashô, jovem pertencente à classe samurai que largara tudo para viajar a pé pelo Japão em busca de inspiração para seus haicais. O texto nos dá a ver o quanto Leminski estava imerso na cultura oriental, pois na biografia ele nos conta sobre artes como o Kendô (caminho da espada), o Kyu-dô (arte do arco e da flecha), o Chá-dô (caminho do chá) e o Hai-ku-dô (caminho do haikai) e da relação que estas possuem entre si, uma vez que todas exigem uma espécie de “concentração desconcentrada”. Assim também podemos olhar a poesia, pois Leminski faz a comparação entre esta e o zen, na medida em que ambos estão interessados apenas no “aqui e agora”, na intuição.

É num momento ordinário da vida que o haikai se constitui, compondo-se de uma junção de palavra e imagem que põe em dúvida se esta prática realmente é escrita, como aponta Leminski na biografia:

O caminho do haikai, arte zen, parece um contrassenso nesse zen tão não verbal. Exatamente por isso desconfiamos que o haikai, talvez, não seja escrito em palavras.

Duvidamos até que seja escrito.

Ele é inscrito. Desenhado. Incrustado, como um objeto, em outro sistema de signos.

Palavras mais que palavras: gestos, vivências, coisas em si.

(LEMINS, 2013,142)

Esse objeto, resultado da aglutinação da linguagem verbal e não-verbal, é transgressor às formas de pensamento convencionais, outro motivo para que Leminski absorvesse o haikai em seu fazer poético. Numa das cartas escritas ao poeta e amigo Régis Bonvicino, Paulo Leminski fala do ideograma como um signo revolucionário necessário ao 3º mundo:

o 3º mundo precisa

de signos eversores

subversores

“qui nadis contra suberna”

modelosmatrizes

padrões sementes de insurreição

revolta e revolução

da sensibilidade

e do pensamento

(LEMINSKI, 1978,P.73)

A cultura oriental subverte as formas ocidentais e afeta, inclusive, a poesia brasileira, como escreve em seu ensaio bonsai: niponização e miniaturização da poesia brasileira. Neste texto, Leminski fala das recentes conquistas das artes ocidentais que coincidiam com a arte japonesa tradicional e uma delas é o haikai, que influenciou os Modernistas de 22 através de traduções francesas. O poeta cita Oswald de Andrade e seus “poemas-minuto”, Drummond e seu breve poema “Stop. Avida parou. Ou foi o automóvel?” e Millôr Fernandes que contribuiu para que a palavra “hai-kai” fosse incluída no vocabulário brasileiro. Interessante também é a relação que Leminski faz entre o poema japonês e a arte do grafitti, além das frases expostas em “out-door” pela geração de 1970, afirmando que ali era feito haicais sem querer.

Mas o poeta não só escreveu sobre o assunto como adotou essa arte em suas produções, como faz em seu livro de poemas intitulado Distraídos Venceremos, usando o ideograma de Kawa que possui três linhas verticais e significa “rio”. A utilização desse procedimento dialoga com o termo da escultura Essere-fiume (ser rio) do artista Giuseppe Penone, como mostra a poeta Júlia Studart em seu texto, Giuseppe Penone e Paulo Leminski: além do retrato, essere-fiume:

Isto é, uma cartografia de seu próprio trabalho como poeta: fazer sangrar a página, dar corpo a ela através do poema, fazer dela um corpo natural para uma interferência- a do poema.

(STUDART, 2009,p.132)

Além disto, Studart cita os dois poemas, Hai e Kai de Paulo Leminski, como objetos que refazem o percurso de Kawa, do rio, que nasce e morre num pequeno espaço de tempo:

HAI

Eis que nasce completo

e, ao morrer, morre germe,

o desejo, analfabeto,

de saber como reger-me,

ah, saber como me ajeito

para que eu seja quem fui,

eis o que nasce perfeito

e, ao crescer, diminui

(LEMINSKI, 2013,p.234)

KAI

Mínimo templo

para um deus pequeno,

aqui vos guarda,

em vez da dor que peno,

meu extremo anjo de vanguarda.

De que máscara

se gaba sua lástima,

de que vaga

se vangloria sua história,

saiba quem saiba.

A mim me basta

a sombra que se deixa,

o corpo que se afasta

(LEMINSKI, 2013,p.234)

O texto também desdobra a questão do “ser-rio” como uma condição do artista (“ser-artista-rio”), pois é ele quem vai esculpir a pedra, como poeta, dar forma ao poema. Assim como Bashô, Leminski permeia por caminhos vulgares, como um rio, a fim de encontrar o haiku-dô (caminho do haikai) e lança alguns poemas como estes que estão no livro Toda Poesia: Paulo Leminski:

 

pelos caminhos que ando

um dia vai ser

só não sei quando

(LEMINSKI,2013,P.235)

*

viu-me,

e passou,

como um filme

(LEMINSKI, 2013,p.236)

*

ano novo

anos buscando

um ânimo novo

(LEMINSKI, 2013,p239)

*

cortinas de seda

o vento entra

sem pedir licença

(LEMINSKI, 2013,p.239)

As palavras entram como o vento, sem pedir licença, e se instalam numa folha de papel em forma de haikai. Parece simples, mas a complexidade do haikai vem da experiência espiritual intensa, como mostra Leminski na biografia:

 

Não, o haikai de Bashô não é a fotografia adocicada de um lótus flutuando no velho tanque de um mosteiro.

São feridas, contradições zen, singulares vivências de uma sensibilidade à flor da pele.

(LEMINSKI,2013,p.116)

Essa relação do corpo lançado à experiência também está no poema de Paulo Leminski Aço em flor, que nos dá a ver uma imagem simples e poética do harakiri, realizado pelo poeta japonês Mishima (traduzido por Leminski), que é um suicídio ritual cujo gesto representa um protesto contra a degradação de uma cultura ocidentalizada:

Aço e flor

Quem nunca viu

que a flor, a faca e a fera

tanto fez como tanto faz,

e a forte flor que a faca faz

na fraca carne,

um pouco menos, um pouco mais,

quem nunca viu

a ternura que vai

no fio da lâmina samurai,

esse, nunca vai ser capaz.

(LEMINSKI,2013,P.198)

Ao ler a biografia de Matsuó Bashô, nos deparamos com uma escrita que diz muito sobre o próprio Leminski (uma “tradução de si mesmo no outro”, como diz Júlia Studart), pois há uma relação de afinidade entre a forma de pensamento sobre a vida-poesia destes dois poetas. Paulo Leminski toma toda a história do mestre Bashô como experiência e devolve esse aprendizado em forma de intensos haicais.

[Beatriz Matos]

 

 

 

 

 

Referências:

 

­­­LEMINSKI, PAULO. “bashô-a lágrima do peixe”. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski-4biografias-Paulo Leminski. 1ªed.São Paulo: Companhia das Letras,2013.

_________________. “bonsai:niponização e miniaturização da poesia brasileira”. Anseios crípticos 2. Curitiba, Paraná: Criar EdiçõesLtda, 2001.

_________________.Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica/Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Org. Régis Bonvicino e Tarso M. de Melo. São Paulo: Ed.34,2007.

_________________. Toda poesia/Paulo Leminski. 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

LIMA, MANOEL RICARDO DE.”Bashô”. Entre percurso e vanguarda: alguma poesia de P. Leminski. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult,2002.

STUDART,JÚLIA. “Giuseppe Penone e Paulo Leminski: além do retrato, essere-fiume.”. Conversas, diferença n.1 [ensaios de literatura etc]. Org. Júlia Studart Florianópolis, Santa Catarina: Editora da Casa, 2009.

 

 

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